Há algumas verdades que ninguém contesta. São como crenças enraizadas que condicionam o nosso comportamento, decisões e modo de ver o mundo. É como o ar que respiramos, está em todo lugar e só pensamos nele quando sentimos sua falta. Só choques muito fortes são capazes de alterar estas crenças de forma repentina. Essas mudanças que acontecem com tanta força que somos capazes de identificar com nitidez um antes e um depois. Sem isso, só processos sutis e muito longos mudarão aos poucos as condições, os agentes, comportamentos e impactarão as nossas percepções e julgamentos gradualmente até que um novo modelo de realidade seja formado.

Por CARLOS CAMPOS

Reparação de veículos fora de garantia é terra de ninguém. Até quando?

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O mercado fora de garantia sempre foi uma destas realidades em que os fabricantes e concessionários não conseguem atuar por terem preços muito caros. Todos sabem disso. Montadoras, concessionários, lojistas de peças, mecânicas independentes e até os próprios consumidores. Tão logo os veículos perdem o período de garantia, os clientes buscam oficinas autônomas, fora do chamado canal oficial de reparação, ligado à fabricante.

Os estabelecimentos independentes sempre dominaram esse atraente mercado que á a reparação do veículo após o fim do prazo de garantia, ainda que isso aconteça de forma fragmentada. Essas oficinas são geralmente mais ágeis, baratas e têm ainda uma característica invejada pela maioria das concessionárias: conseguem criar um relacionamento de confiança com seus clientes.

Como um segmento altamente pulverizado, tais serviços independentes cresceram e se proliferaram em uma terra de ninguém. Qualquer mecânico um pouco mais capacitado e com espírito empreendedor abria a sua oficina e começava a operar. Os mais diversos players existentes de fornecimento de peças de reposição também passaram a trabalhar de forma desorganizada, com canais de distribuição desestruturados e políticas de preços confusas. Políticas assim ainda são muito presentes nesse mercado altamente fragmentado e, muitas vezes, pouco profissionalizado.

Ainda que não seja o principal foco de atuação dos fornecedores de peças, a reparação de veículos fora de garantia não deixa de ser um segmento atrativo e uma rota para ampliar a lucratividade. As montadoras, por sua vez, competem nesse mercado apenas com peças originais. Dessa forma, só conseguem manter a lucratividade quando trabalham com componentes patenteados. Caso contrário, a montadora perde na briga pelo menor preço e não consegue explorar todo o potencial do segmento.

A frustração para todas as marcas é grande. O cliente inicia seu ciclo de vida dentro da concessionária, faz as primeiras revisões, serviços de garantia, mas depois escapa. O fator primordial: preço das peças e da mão de obra. A diferença média é tão grande que faz o cliente nem mais cotar os serviços. Esta crença já está incorporada em seu modelo mental. Apesar disso, há sinais cada vez mais claros de que esta realidade está mudando e que, o até hoje era considerado terra de ninguém, num futuro bem próximo pode se transformar em um segmento mais organizado.

O primeiro sinal é que as companhias de seguro, cansadas de serem enganadas e vendo a necessidade de oferecer mais benefícios aos clientes, começaram a se estruturar melhor e montar redes próprias. Mesmo que sejam terceirizadas, essas mecânicas dão ao cliente um meio termo entre a garantia da concessionária autorizada e a oficina independente. Porto Seguro e Allianz são bons exemplos de companhias que buscaram diferenciação neste segmento e, com essa estratégia, estão conquistando clientes com a chancela de sua marca.

Outro fator que estimula a organização e profissionalização do mercado de reparação de carros fora da garantia é a evolução da tecnologia embarcada dos veículos, que resulta em novas maneiras de fazer o diagnóstico de serviços. O que era um privilégio de carros premium como BMW, Mercedes-Benz e Audi, hoje pode ser visto em carros mais populares, como alguns modelos da Chevrolet, por exemplo.

Essa mudança levara obrigatoriamente os clientes para as concessionárias autorizadas. Equipamentos diagnósticos importados pelas oficinas independentes não serão mais capazes de enfrentar uma tecnologia que integra os dados do veículo no servidor da fábrica, inibindo que equipamentos da rede independente realizem o mesmo serviço.

Esse novo cenário já aponta algumas tendências. A primeira delas é que as mecânicas independentes devem perceber uma queda nítida no movimento e no ticket médio, já que, com a barreira tecnológica, somente os serviços mais simples poderão ser realizados nesses estabelecimentos.

O perfil de clientes destas oficinas independentes também se altera. O foco passa a estar mais na periferia, o que tende a deixar muitas mecânicas vazias, obrigando-as a se deslocarem para cidades ou bairros mais distantes. Quem mora nas grandes capitais facilmente nota que o número de oficinas mecânicas em bairros nobres caiu drasticamente nos últimos anos.

Por outro lado, as concessionárias e fabricantes ainda sofrem com uma estrutura pesada, cara e pouco ágil de atendimento a este segmento. A retenção destes clientes por meio da barreira tecnológica será, na verdade, um grande teste para essas empresas, pois, caso insistam em manter o modelo atual das concessionárias, irão gerar muita insatisfação com a marca. Os clientes se sentirão reféns da montadora, sem direito de escolher um serviço mais ágil e barato. Para eles, o argumento tecnológico pode soar falso, como apenas mais um recurso da empresa para aumentar a lucratividade.

É nítido que, se os fabricantes não se prepararem para atuar neste segmento, ao invés de reter clientes, irão gerar muitos detratores. Ou seja, além de esses consumidores deixarem de comprar veículos da marca, eles falarão mal da empresa para muitas e muitas pessoas.

Criação de marcas paralelas, cessão das tecnologias para oficinas independentes com acordos de compra mínima de peças de sua rede, centros de serviços rápidos, entre outros modelos de acesso a este mercado são opções para que as empresas consigam atender a demanda dos clientes por serviços.

Aqueles que forem mais eficientes e souberem se adequar para explorar esta enorme oportunidade fecharão o ciclo de vida do cliente dentro da marca, aumentarão lucros com o crescimento dos volumes e promoverão resultados melhores em toda cadeia. A terra de ninguém terá um dono: os fabricantes. Como será a exploração da terra? Cada marca precisará desenvolver uma estratégia de acesso ao mercado.

Carlos Campos é Sócio Diretor da Prime Action Consulting

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